A economia digital impõe um novo paradigma, que desafia os sistemas tributários tradicionais, exigindo uma reavaliação das bases de arrecadação. A transição de uma economia baseada em ativos tangíveis, para uma fortemente representada por bens intangíveis e serviços digitais apresenta complexidades que podem inviabilizar as metodologias de tributação que conhecemos.
Este artigo endereça o panorama internacional e a sua conexão com o texto recentemente aprovado, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei Complementar que regulamenta a Reforma Tributária sobre o consumo.
O impacto da digitalização nas bases tributárias
Historicamente, os sistemas tributários se fundamentam em três bases: propriedade, renda/lucro e consumo.
Importa notar que esta escolha por separar o tratamento em diferentes bases não afasta uma conclusão lógica de qualquer sistema tributário: toda a tributação incide, ao final, sobre a renda/lucro do contribuinte, uma vez é do acréscimo do seu patrimônio, acumulado ou corrente, que se extrai o montante necessário para o pagamento do tributo devido.
Portanto, a leitura da legislação tributária deve considerar a “edificação” como um todo, e não apenas as suas “bases”, de forma destacada, sob pena de se aceitar afirmações de que teríamos, numa ou noutra jurisdição, uma carga tributária razoável quando, isoladamente considerada, a alíquota nominal (ou mesmo efetiva) estivesse abaixo da média internacional.
Há mais de uma década, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) lidera um movimento de revisitação dos critérios internacionais de alocação dos direitos dos países de tributar o lucro em suas atividades, denominado Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting).
Com a ampla adesão ao BEPS, a OCDE estruturou os primeiros ensaios do que poderia se tornar uma governança fiscal, impulsionada, principalmente, pelo avanço da economia digital que trouxe substancial volume de desafios, para atualização e compreensão de novos produtos e serviços entregues ao mercado.
A entrega de bens intangíveis pela internet não é sujeita ao mesmo controle que as transações físicas, impondo um amplo debate internacional e tornando difícil a identificação da jurisdição correta para a tributação.
Importante lembrar que – na alvorada do avanço tecnológico e digital dos produtos e serviços, em todo o mundo, diversos países “reagiram” ao receio de terem esvaziada a sua arrecadação com a instituição e cobrança de tributos sobre a economia digital (digital services taxes), enquanto outros ajustaram a adoção de normas de preços de transferência em seu benefício, na linha da alocação de maior parcela do lucro ao país de mercado.
Dos referidos estudos, resultou a chamada Inclusive Framework, muito pautada numa abordagem unificada de solução destes recentes desafios, ao invés do que se identifica, por exemplo, no Brasil, em que se adotam diversas medidas unilaterais de proteção ao direito de tributar (como a tributação na fonte sobre remessas para pagamento de serviços importados e a tributação de lucros de controladas no exterior ainda que com jurisdições com Acordos para Evitar a Dupla Tributação).
Nesse contexto de abordagem global unificada, exsurge o “Pilar 1” que busca, numa de suas vertentes, alocar o lucro nos países onde localizado o mercado consumidor, especialmente relevante para o cenário de digitalização da economia em que produtos e serviços são comercializados sem a necessidade de uma presença física; noutra vertente, a fixação de “salvaguardas”, atribuindo-se margens predeterminadas de lucros na aplicação das regras de preços de transferência.
No Brasil, a legislação de preços de transferência foi recentemente ajustada para os padrões da OCDE, numa tentativa de reduzir a distância do cenário legislativo tributário nacional daquele usualmente adotado nos países mais desenvolvidos economicamente.
Ainda assim, o Pilar 1 permanece alvo de severos debates no cenário internacional, ante a dificuldade de implementação e dos reflexos políticos de sua adoção.
Para além da visão direcionada ao critério de alocação dos lucros e da estruturação de normas eficientes de preços de transferência, estabeleceu-se, também no âmbito da OCDE, o Pilar 2, inaugurando nova “Regra” Global Anti-Erosão de Base.
Em linhas gerais, o Pilar 2 orienta para a fixação de uma alíquota mínima efetiva global de 15% a título de tributação sobre a renda/lucro (no Brasil, o equivalente ao Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ). Caso o país-fonte cobre menos do que a alíquota mínima global, o país-sede poderia exigir o recolhimento do delta (top-up tax).
Demais regras podem ser aplicadas para se alcançar a alíquota mínima efetiva global, aspecto que deve ser avaliado com cautela à luz da legislação das jurisdições relevantes em cada caso.
Pois bem.
Inserida neste amplo contexto global, a Reforma Tributária Brasileira sobre o consumo, objeto da Emenda Constitucional nº 132/2023, teve a sua legislação complementar recentemente aprovada na Câmara dos Deputados.
O Projeto de Lei Complementar (“PLP”) nº 68/2024 parte da nova premissa constitucional de que será revogada a sistemática de tributação sobre o consumo, esta pautada em 5 (cinco) tributos: PIS, COFINS e IPI (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal).
No futuro cenário fiscal, o quinteto acima referido será “substituído” por um “trio” idealmente mais eficiente: a Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS (federal), o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS (estadual, municipal e distrital) e o Imposto Seletivo – IS (federal). O IPI terá a sua aplicação reduzida, não sendo completamente extirpado do ordenamento jurídico.
O PLP nº 68/2024 endereça a preocupação com a nova tributação da economia digital sobre o consumo, cabendo o destaque para a expressa menção às plataformas digitais. Isto fica evidente no total de 21 (vinte e um) dispositivos que utilizam a palavra “digital” ou “digitais”, seja para se referir ao setor econômico ou à aplicação de alguma tecnologia como veículo para obtenção de informações relevantes para o Fisco.
Em contraste, as leis (em sentido estrito) que regem os atuais PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, todas juntas, não utilizam “digital” ou “digitais”, apenas fazendo referência, numa passagem, a serviços de “digitalização”, e, na outra, a alíquotas aplicáveis em certas operações com scanners (“digitalizadores”).
O PLP nº 68/2024 impõe responsabilidade tributária às plataformas digitais, ainda que domiciliadas no exterior, pelo recolhimento da CBS e do IBS relativos às operações realizadas por seu intermédio, inclusive podendo figurar como solidárias em determinadas hipóteses.
A plataforma digital deverá apresentar, ao Comitê Gestor do IBS e à Receita Federal do Brasil, informações sobre as operações com bens e serviços realizadas por seu intermédio, identificando o fornecedor, mesmo que este não seja contribuinte.
Como se nota, em paralelo a importantes debates sobre a aplicação e o detalhamento dos Pilares 1 e 2, o Brasil mantém a sua inclinação para a proteção de sua base tributária, reconhecendo claramente, em suas Casas Legislativas, a relevante presença da economia digital.
Panorama futuro
O avanço da Reforma Tributária no Congresso Nacional demanda o acompanhamento próximo daqueles interessados na economia digital.
A promessa de neutralidade, prevista nos primeiros dispositivos do PLP nº 68/2024, é inserida no contexto da legislação tributária nacional como um princípio que orientará para que a CBS e o IBS (IVA dual) evitem distorcer as decisões de consumo e de organização da atividade econômica, ressalvadas as exceções previstas na Constituição da República e no referido texto complementar.
A ideia que permeia a nova tributação indireta é a de que a CBS e o IBS incidam “por fora”, com uma sistemática de não cumulatividade plena (ressalvadas exceções pontuais), evitando-se o incremento do preço do serviço ou produto.
Cabe registro, todavia, para a preocupação já externada pelo mercado – com destaque para o setor de serviços – que, a exemplo dos serviços abarcados na economia digital, poderá haver um incremento de carga tributária ultrapassando o patamar de 300% (trezentos por cento).
Comparados aos atuais PIS e COFINS (cumulativos) à alíquota combinada de 3,65%, somados ao ISS numa alíquota que pode alcançar o patamar de 5%, teremos, no novo cenário, a CBS e o IBS que observarão uma trava (alíquota máxima conjunta) de 26,5%.
Mesmo considerando a aplicação de PIS e COFINS (não cumulativos) à alíquota combinada de 9,25%, ou outra a depender da atividade ou natureza da receita, o incremento na carga tributária é substancial.
Estima-se um aumento no valor das faturas a serem emitidas pelas plataformas digitais, como os provedores de streaming Netflix, Spotify, Amazon Prime e Disney+, de aplicativos de transporte, como Uber e 99, e de delivery, como iFood e Rappi.
Ainda se debate se o incremento será apenas nas faturas, tendo em vista a sistemática de ampla não cumulatividade idealizada ou se ocorrerá um sobrepeso no fluxo de caixa das empresas (“aumento do custo”), tendo em vista que o crédito dependerá do efetivo recolhimento nas etapas anteriores.
É fundamental que a sistemática proposta no PLP nº 68/2024 para o aproveitamento de crédito do IVA dual – o split payment – seja adotada sempre em vista do princípio da neutralidade, evitando-se que todo o esforço para a Reforma Tributária implique, exclusivamente, a majoração do custo fiscal.
Conclusão
A nova tributação na era digital demanda uma constante atualização e validação da eficiência e transparência dos mecanismos de apuração e recolhimento da tributação incidente, em todos os seus níveis.
À medida que a digitalização transforma o panorama econômico, a necessidade de harmonização internacional, observadas as características específicas de uma nação complexa e continental, é fundamental para evitar-se o prolongamento ou a temida intensificação da tensão (“guerra”) fiscal no Brasil.
Para além do prisma legislativo, a harmonização com as diretrizes adotadas nos países economicamente mais desenvolvidos deve considerar – numa visão prática – a funcionalidade da tributação no Brasil, endereçando-se tanto o custo fiscal, quanto o dispêndio com um ecossistema mais racional no âmbito das obrigações acessórias municipais, estaduais/distritais e federais.
